quarta-feira, 8 de junho de 2011

Essências

A menina foi embora e deixou o menino no jardim
As águas encheram a mata e ele mergulhou no fundo
Os aguapés olharam com o espanto aquele ser de rosto inchado trancando a respiração
A menina ainda não voltou...
Ela partiu para uma terra fria levada por abelhas
Ela se debruçou nos livros
Tomou decisões e vestiu-se de branco
Ela é mulher...
Ele ainda se conserva menino
Mas se os dois se encontram
O encanto da sereia a faz voltar a ser menina
A rir de coisas bobas
Como peixes gigantes desmedidos
E canções que falam de ausência
A desejar a carne feita em meia à fumaça
Aos planos não cumpridos
Aos amores desfeitos, mas não esquecidos.
Ao final de maio a menina será lembrada
Pela beleza que inspira,
Pelo intelecto de pesquisa
Pelas risadas que provoca
E pela memória que cravou no caráter do menino
Qualquer lugar é especial
Toda escrita tem seus valor
Os conselhos são afetuosos
O futuro tem brilho
Ela está no mundo e o mundo reage a ela
Com fúria e melancolia
Com versos e contos ela prossegue
O brilho ainda está submerso no rosto
E o menino vai ficar sentado esperando por ela
A fuga não será breve e o tempo se fundirá às alegrias
Aroeiras e mel

Dedicado à Anna Frida Hatsue.
De: Orilzo de Campos Silva

quarta-feira, 4 de maio de 2011

O amor é o mínimo


O mínimo que devemos ter pelas pessoas é o amor. Não daquele avassalador amor descrito por Camões, mas o amor genuíno, aquele que se sente por qualquer outro ser humano, pelo simples fato dele existir, tenha ele a cor de pele que tiver, com suas psicoses, com os seus erros e manias, seja ele quem for e de onde for. O amor genuíno do qual me refiro, é aquele a quem recorremos quando alguém nos fere profundamente, e mesmo assim, tentamos justificar o seu comportamento e perdoá-lo.
Amar alguém não é tão difícil como parece ser ou como os contos de fadas nos apresentam. Amar é desejar o melhor, é respeitar, é se preocupar, contribuir para que o outro esteja bem. Apesar do amor ser tão natural para algumas pessoas, para outras, no entanto, é algo extremamente doloroso, pois é difícil perdoar, respeitar ou querer o bem, quando nos sentimos injustiçados pelo mundo, quando vemos as pessoas como inimigos perseguidores. Uma pessoa terá dificuldades em amar se ela deseja apenas o que o outro possui, se ela observa os outros como meros pontos de comparação. Buscar cada vez mais não é um erro, o erro está em não se realizar com as conquistas, é viver se sentindo sempre pequeno por não possuir o bem do outro, mesmo que ele seja um bem desnecessário em nossas vidas.
Doloroso ou não, amar ao próximo é algo íntimo, é um sentimento que pertence apenas a quem ama, não é necessário demonstrações extravagantes desse amor, o simples fato de senti-lo e se inquietar-se com o sofrimento alheio já nos torna um amante incondicional. A inquietação mais cedo ou mais tarde nos leva a uma ação, a uma decisão, a inquietação torna o amante um ser angustiado, um ser inconformado. O amor genuíno faz guerra no coração de quem o sente. Uma guerra constante entre o querer e o efetuar, entre o poder e o desejar, entre o viver e os sonhar. 
E finalmente, amar não é o mesmo que conviver. Amar é aceitar o outro como ele é. A convivência vai além do amor. Amor é unilateral, a convivência exige reciprocidade, reciprocidade de carinho e respeito. Muitos são os que amamos, mas poucos são aqueles com os quais escolhemos conviver harmoniosamente. Podemos amar alguém que está longe, mesmo sabendo que a aproximação torna-se uma amarga experiência. Amar genuinamente e estar juntos são distintos, muitas vezes não se anulam e nem se complementam. Podemos e devemos amar uns aos outros, e a nós mesmos, aceitando melhor o fato de que a convivência é uma árdua tarefa para duas pessoas que se amam genuinamente ao mesmo tempo, buscando o mesmo espaço. Mas a convivência não é possível para duas pessoas que se amam genuinamente em tempos diferentes, e nem para uma pessoa que ama e que deseja ser genuinamente amada. Para conviver é preciso também somar o que o outro está disposto a oferecer. Enquanto esperamos pela tão desejada reciprocidade, seguimos fazendo o mínimo, amando ao outro.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Além do que se pode ver

Algumas relações me fazem sentir como um pássaro nascido em uma pequena ilha. Sempre fui cuidada e afagada por um tutor muito amoroso. Ele sempre me dizia que longe do meu ninho só existiam inimigos e tudo era muito perigoso. Apesar de eu já me sentir capaz de voar sozinha, eu não recebia permissão para sair, mas isso não me incomodava, afinal de contas, amor e cuidados não me faltavam. Quando eu sentia fome, lá vinha o meu tutor trazendo uma farta refeição. Vez ou outra eu esticava o pescoço e conseguia ver o que se passava ao meu redor. Achava tudo muito lindo, a ilha em que eu morava era esplendorosa, bela, encantadora, o meu tudo, o meu mundo.
Certo dia, pressentindo a minha fome se aproximar, meu tutor imediatamente voou a procura de alimento. Em sua ausência, uma forte tempestade atingiu o ninho onde eu estava e fui levada para bem longe até cair em cima de algumas pedras bastante íngremes. Sentia um frio horrendo e a fome me corroia por dentro. Tentei voar, mas a minha primeira tentativa foi um fracasso total, tentei a segunda, terceira, quarta vez, mas o vento forte me impedia de voar. Depois de várias tentativas, sentindo a irracionalidade da morte se aproximar, já cansada e muito ferida, eu chamei por socorro e esperei ser ouvida pelo meu tutor, mas tudo foi em vão! Naquela forte tempestade, nem eu mesma conseguia ouvir os meus apelos. Meu tutor, que antes sempre me acolhera, agora estava longe e não podia mais me proteger. Em meu desespero, comecei a bater minhas asas, eu bati as minhas asas porque temia não ser ouvida, porque tinha medo da morte, porque era a minha única chance de sobrevivência, bati desesperadamente minhas asas porque não havia mais por quem esperar. Enfim, começo a voar, mas a busca solitária pela sobrevivência era apunhalar pelas costas aquele que sempre me protegeu, a tentativa de viver sozinha era trair e rejeitar os cuidados do meu tutor.
Recobro os meus sentidos, olho ao meu redor e não encontro o meu tutor, não vejo meu ninho e não reconheço aquele lugar. Olho ao meu redor e vejo árvores frondosas, uma grande diversidade de flores e frutos. Começo a voar novamente, e encontro lindas cachoeiras, belos pássaros com seus cantos igualmente belos, vejo o sol radiante e de noite a lua aconchegante, as estrelas, o barulho dos animais e os embalos das árvores gigantes.
Lá bem longe, reconheço a ilha onde eu morava, e vejo apenas um minúsculo amontoado de pedras. Todas as manhãs, eu que agora já não sou um pequeno pássaro, olho para a ilha de pedras e a saudade do meu tutor aperta o peito, mas não sinto vontade de voltar para a pequena ilha, mesmo sabendo que lá, existe alguém que me espera em algum abrigo no alto daquelas pedras. Hoje eu vejo o quanto era pequeno tudo aquilo que meu querido tutor me oferecia como recompensa pelo seu amor. A cada dia a ilha torna-se menor aos meus olhos e me sinto livre, pois a cada momento eu conheço algo diferente e encantador, a cada dia eu vôo ainda mais alto e conquisto mais um pedacinho do mundo. Se hoje existe algo além do que eu posso ver, amanhã este mistério será desvendado, pois amanhã voarei ainda mais alto. 

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Tempos


A sabedoria do tempo. O tempo da sabedoria. A sabedoria tem tempo? O tempo tem sabedoria? Somos todos sujeitos, procurando agir com sabedoria, intermediados pelo tempo. Sabemos da incontrolável existência do tempo. Mas, o quê nos fará reconhecer a proximidade do tempo, senão a própria sabedoria?
Por vezes, a nossa consciência, ou mesmo os velhos conselhos vindos de velhas personalidades nos apontam que, as escolhas tomadas nos levou a caminhar pelo lado mais tortuoso da estrada. E, nestes momentos, a melhor desculpa para não tomarmos nenhuma atitude, a melhor maneira de adiarmos as mudanças, de nos conservar no comodismo infinito é despejar a culpa em algo que não dependa de nós. Frases milagrosas são ditas há décadas, senão há séculos, para os outros e para nós mesmos: dê tempo ao tempo ou mesmo, só o tempo resolve.
Não digo que o tempo não seja importante, ele pode ser investido em várias coisas, para o bem ou para o mal, mas ele é usado, e por isso deve ser visto como um meio e não um fim. O tempo não poderia colar dois objetos que não foram revestidos por cola, o tempo não poderia fazer crescer uma planta que não foi plantada e regada todos os dias, o tempo não poderia secar uma roupa que não foi lavada e estendida. Desta maneira, o mesmo tempo pode ser usado para colar, crescer ou secar, dependendo de como o investimos. Somos donos do tempo, e não o tempo, donos de nós.
É preciso haver luta pelo que queremos, é preciso nos conscientizar de que as coisas são dependentes de atitudes. Depositar toda a responsabilidade sobre o tempo é admitir sem luta, que somos fracos. Mesmo quando a espera se faz necessária, é preciso haver uma constante busca pela sabedoria, caso contrário, quando o tempo chegar, não seremos capazes de distinguir o tempo tão esperado, tempo de agir. A própria espera é uma ação para aqueles que, enquanto esperam, lutam e buscam a sabedoria. Descobrimos que, com o tempo adquirimos sabedoria, e descobrimos também que o tempo e a sabedoria são distintos, assim como o tempo e o amor, o tempo e a busca, o tempo e a razão. É preciso lutar pelo que se almeja. Permanecer na incerteza é o ponto mais distante da conquista. De nada adianta a sabedoria se não houver luta pelo que se acredita, mesmo que se acredite em coisas diferentes a cada segundo.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Gato selvagem


                Tempos atrás decidi passar uns dias em um lugar deserto e bastante selvagem. Estava sozinha e não pude deixar de perceber a presença de um gato, ainda filhote, que me direcionava um olhar de espanto e curiosidade. Fiquei a observá-lo também, era como se nos vigiássemos o tempo todo. Ele não se afastava, ao contrário, se comportava com mansidão, como se desejasse a minha aproximação. Dias se passaram e nós ainda nos olhávamos de longe, como que hipnotizados um pelo outro. Ele emitia sons e brincadeiras que demonstravam a sua docilidade, eu por minha vez, percebendo a sua atenção por mim, vagarosamente me aproximava dele tentando parecer inofensiva também. A realidade é que nós dois estávamos ali sozinhos, eu estava para ele, assim como ele para mim, ele perdido longe do seu bando e eu fugindo de uma vida cheia de desilusões. Ambos tinham a necessidade um do outro, ambos estavam à procura do que se havia perdido no tempo e no espaço.
                Com o passar dos dias seus rodeios estavam cada vez mais próximos de mim e já não apenas nos olhávamos, mas também nos comunicávamos com muita simpatia um pelo outro. A aproximação, outrora buscada e desejada, ocorreu de uma maneira tão natural, que nem percebemos o exato momento em que começamos a brincar um com o outro, correndo nos campos, pulando como duas crianças, embora se tratasse de um ser humano adulto e um gato selvagem. Passamos tempos juntos, e éramos o suficiente um para o outro. Ele me defendia dos inimigos da selva e me dava o seu carinho, e eu o acariciava com muito amor, o alimentava e o abrigava do frio e das chuvas.
                Seu carinho e a sua aparente necessidade do meu conforto e segurança me lembravam o de uma criança dengosa, e assim eu o chamava, de ‘dengo’. Dengo se tornou meu companheiro, meu melhor amigo, meu protetor. Quando me deparava com alguma dificuldade eu não temia, pois dengo estava comigo sempre. Quando fazia mal tempo, era dengo que não temia, pois eu sempre estava ao seu lado.
Dengo e eu gostávamos de passear juntos pelos campos, ás vezes íamos longe, mas dengo sempre sabia o caminho de volta. Ele caminhava na minha frente, abrindo o caminho e me assegurando que não estávamos perdidos, e que estava tudo bem. Ele gostava de estar na frente, parecia ter orgulho disso. Tempo em tempo ele parava e ficava me olhando, como se pedisse carinho, então eu chegava bem perto dele, ele me lambia e eu o acariciava. E assim, eu esquecia o mundo lá fora, e dengo crescia cada vez mais, até se tornar um lindo gato adulto.
                Foi em um desses passeios pelo campo que aconteceu algo inesquecível em nossas vidas. Naquele dia havíamos andado bastante, em uma direção oposta das que costumávamos caminhar. Dengo seguia na minha frente abrindo o caminho. Na medida em que caminhávamos, dengo demonstrava menos dependência do meu carinho, e percebia cada vez menos a minha presença. Dengo às vezes parava e olhava para mim, mas não com aquele olhar dócil e amoroso como de costume, eu não sabia do que se tratava, mas devia ser algum sinal de alerta. Talvez ele quisesse dizer que estávamos em perigo, mas que ele iria me proteger, e então ficaria tudo bem.
De repente, dengo soltou um urro bem forte e começou a correr, mas ele corria tanto que eu não consegui acompanhá-lo. Corri o máximo que pude, então, enfim ele parou, e eu me senti mais aliviada por vê-lo me esperando, tudo devia ter passado de uma brincadeira, ou quem sabe ele só queria me afastar rapidamente de algum perigo, que eu não havia dado conta.
Quando estava me aproximando de dengo percebi que atrás dele havia dezenas de gatos como ele. Eles todos se colocaram em uma postura agressiva contra mim, ficou claro que, para eles, eu representava uma ameaça naquele momento. Olhei para dengo como quem clama por ajuda. Eu o chamava para irmos embora, mas meus esforços eram em vão. Dengo agora desenvolvera um andar firme e seu peito estava estufado, dando a ele uma aparência agressiva e superior. Andava em círculo acompanhado pelos outros gatos, rosnando e mostrando os dentes em minha direção.
Eu esperei a sua proteção, eu gesticulava e o chamava insistentemente para irmos embora juntos, para voltarmos para casa. Mas dengo fitava-me profundamente com um comportamento ameaçador. Os urros e ameaças de todo o bando me amedrontaram, mas para mim, os que mais me machucavam eram os emitidos por dengo. Depois de tanto esforço sem sucesso algum, fui embora sozinha, não havia outra escolha. No caminho de volta, me perdi várias vezes, em surtos de desespero imaginava que dengo estivesse na minha frente, e que ficaria tudo bem. A cada passo dado, uma lágrima escorria do meu rosto e tentava aceitar o que havia acontecido naquela tarde. Não conseguia entender, como ele foi capaz de me dar tanto carinho, sendo um selvagem, e entendia menos ainda, como ele deixou ser cativado durante todo aquele tempo, por uma pessoa que era também para ele, uma selvagem.
Talvez dengo sinta a minha falta, talvez ele tenha saudades do tempo que passamos juntos, mas existem várias lições que se aprendem com a dor, e uma delas é que, o amor não vence aos instintos, ao que nascemos para ser, ao que nos foi concedido por natureza. Seria justo culpá-lo por me agredir? Seria justo culpar-me por ter ido embora sozinha? O fato de amarmos verdadeiramente, não muda o que somos. Não duvido do amor que dengo sentia por mim, não duvido da sinceridade dos momentos que passamos juntos, mas nascemos para ser selvagem um para o outro.