sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Gato selvagem


                Tempos atrás decidi passar uns dias em um lugar deserto e bastante selvagem. Estava sozinha e não pude deixar de perceber a presença de um gato, ainda filhote, que me direcionava um olhar de espanto e curiosidade. Fiquei a observá-lo também, era como se nos vigiássemos o tempo todo. Ele não se afastava, ao contrário, se comportava com mansidão, como se desejasse a minha aproximação. Dias se passaram e nós ainda nos olhávamos de longe, como que hipnotizados um pelo outro. Ele emitia sons e brincadeiras que demonstravam a sua docilidade, eu por minha vez, percebendo a sua atenção por mim, vagarosamente me aproximava dele tentando parecer inofensiva também. A realidade é que nós dois estávamos ali sozinhos, eu estava para ele, assim como ele para mim, ele perdido longe do seu bando e eu fugindo de uma vida cheia de desilusões. Ambos tinham a necessidade um do outro, ambos estavam à procura do que se havia perdido no tempo e no espaço.
                Com o passar dos dias seus rodeios estavam cada vez mais próximos de mim e já não apenas nos olhávamos, mas também nos comunicávamos com muita simpatia um pelo outro. A aproximação, outrora buscada e desejada, ocorreu de uma maneira tão natural, que nem percebemos o exato momento em que começamos a brincar um com o outro, correndo nos campos, pulando como duas crianças, embora se tratasse de um ser humano adulto e um gato selvagem. Passamos tempos juntos, e éramos o suficiente um para o outro. Ele me defendia dos inimigos da selva e me dava o seu carinho, e eu o acariciava com muito amor, o alimentava e o abrigava do frio e das chuvas.
                Seu carinho e a sua aparente necessidade do meu conforto e segurança me lembravam o de uma criança dengosa, e assim eu o chamava, de ‘dengo’. Dengo se tornou meu companheiro, meu melhor amigo, meu protetor. Quando me deparava com alguma dificuldade eu não temia, pois dengo estava comigo sempre. Quando fazia mal tempo, era dengo que não temia, pois eu sempre estava ao seu lado.
Dengo e eu gostávamos de passear juntos pelos campos, ás vezes íamos longe, mas dengo sempre sabia o caminho de volta. Ele caminhava na minha frente, abrindo o caminho e me assegurando que não estávamos perdidos, e que estava tudo bem. Ele gostava de estar na frente, parecia ter orgulho disso. Tempo em tempo ele parava e ficava me olhando, como se pedisse carinho, então eu chegava bem perto dele, ele me lambia e eu o acariciava. E assim, eu esquecia o mundo lá fora, e dengo crescia cada vez mais, até se tornar um lindo gato adulto.
                Foi em um desses passeios pelo campo que aconteceu algo inesquecível em nossas vidas. Naquele dia havíamos andado bastante, em uma direção oposta das que costumávamos caminhar. Dengo seguia na minha frente abrindo o caminho. Na medida em que caminhávamos, dengo demonstrava menos dependência do meu carinho, e percebia cada vez menos a minha presença. Dengo às vezes parava e olhava para mim, mas não com aquele olhar dócil e amoroso como de costume, eu não sabia do que se tratava, mas devia ser algum sinal de alerta. Talvez ele quisesse dizer que estávamos em perigo, mas que ele iria me proteger, e então ficaria tudo bem.
De repente, dengo soltou um urro bem forte e começou a correr, mas ele corria tanto que eu não consegui acompanhá-lo. Corri o máximo que pude, então, enfim ele parou, e eu me senti mais aliviada por vê-lo me esperando, tudo devia ter passado de uma brincadeira, ou quem sabe ele só queria me afastar rapidamente de algum perigo, que eu não havia dado conta.
Quando estava me aproximando de dengo percebi que atrás dele havia dezenas de gatos como ele. Eles todos se colocaram em uma postura agressiva contra mim, ficou claro que, para eles, eu representava uma ameaça naquele momento. Olhei para dengo como quem clama por ajuda. Eu o chamava para irmos embora, mas meus esforços eram em vão. Dengo agora desenvolvera um andar firme e seu peito estava estufado, dando a ele uma aparência agressiva e superior. Andava em círculo acompanhado pelos outros gatos, rosnando e mostrando os dentes em minha direção.
Eu esperei a sua proteção, eu gesticulava e o chamava insistentemente para irmos embora juntos, para voltarmos para casa. Mas dengo fitava-me profundamente com um comportamento ameaçador. Os urros e ameaças de todo o bando me amedrontaram, mas para mim, os que mais me machucavam eram os emitidos por dengo. Depois de tanto esforço sem sucesso algum, fui embora sozinha, não havia outra escolha. No caminho de volta, me perdi várias vezes, em surtos de desespero imaginava que dengo estivesse na minha frente, e que ficaria tudo bem. A cada passo dado, uma lágrima escorria do meu rosto e tentava aceitar o que havia acontecido naquela tarde. Não conseguia entender, como ele foi capaz de me dar tanto carinho, sendo um selvagem, e entendia menos ainda, como ele deixou ser cativado durante todo aquele tempo, por uma pessoa que era também para ele, uma selvagem.
Talvez dengo sinta a minha falta, talvez ele tenha saudades do tempo que passamos juntos, mas existem várias lições que se aprendem com a dor, e uma delas é que, o amor não vence aos instintos, ao que nascemos para ser, ao que nos foi concedido por natureza. Seria justo culpá-lo por me agredir? Seria justo culpar-me por ter ido embora sozinha? O fato de amarmos verdadeiramente, não muda o que somos. Não duvido do amor que dengo sentia por mim, não duvido da sinceridade dos momentos que passamos juntos, mas nascemos para ser selvagem um para o outro.