quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

O pássaro e a cigarra

Voltando para a casa, ao fim de mais um dia exaustivo de trabalho, me indagava insistentemente: que lição meu dia ensinou hoje? sem encontrar uma resposta que me parecesse aceitável. Quando ao passear pelas calçadas, me deparei com algo que me chamou a atenção. No primeiro momento ouvi somente o som de vibrações, asas aceleradas a se debaterem, parecia vir de um ser desesperado, pensei que se tratasse de pássaros, de beija-flores, de mamangavas, de besouros voadores, mas nada disso vi ao meu redor, meus olhos então localizaram uma cigarra, uma cigarra grande a se debater, e logo percebi a causa de tanta aflição.
Um pássaro, que parecia mais desesperado que a própria cigarra agonizante, se assustava com os movimentos e com o barulho que sua presa emitia, parecia ter medo de perdê-la, parecia ter medo que a cigarra se tornasse seu predador. Mas com sua postura imponente, tentando se auto-afirmar e assim executar seu papel de predador incumbido pelo pecado, lá estava o grande, faminto, feroz, predador e medroso pássaro. Se a cigarra pudesse tomar o meu lugar por um instante veria quão inseguro estava aquele que a matava, mas justamente por estar abaixo do seu opressor, a cigarra teme e se deixa dominar pelo seu medíocre predador.
Minutos depois de iniciada a sessão tortura pássaro/cigarra, o pássaro sentiu seus esforços recompensados ao ver a grande e indefesa cigarra cessar sua vibração e amortecer seu canto.   O pássaro, outrora tão amedrontado, sai então carregando sua presa por entre o bico, provavelmente para mostrar ao “reino dos pássaros” que ele é um exímio predador exibindo a grande cigarra, agora seu trunfo, como um sinal de coragem, dominação, imposição e soberania.
A cigarra clama, assim como a natureza. A cigarra vibra junto com a natureza. A cigarra cessa seu canto, e também a natureza. A cigarra e a natureza. A cigarra é a natureza. Cigarra. Natureza. E os pássaros? Os pássaros estão por aí, por aqui, por ali, por todas as partes, mas ninguém se dá conta, ninguém percebe a sua aproximação, ninguém nota a sua presença. Talvez porque somos as cigarras, talvez porque somos os pássaros. Mas, quando as cigarras desaparecerão? As cigarras jamais se extinguirão, porque existem cigarras por todas as partes, escondidas em cada um de nós. Os pássaros se transformam em cigarras, assim como as cigarras em pássaros. Cigarras nascem, morrem e novamente nascem, brotam, germinam. Pássaros e cigarras surgem dos cantos, dos sons, dos toques, das lágrimas, dos sentidos, das circunstâncias da vida. E essa foi a lição que aprendi naquele dia, sobre pássaros e cigarras.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

O prego na parede

É muito bom estar só comigo mesma, escutar o silêncio que vem da alma, a própria respiração como uma forma de confirmação de que este espaço é só meu, de que eu decido o momento e a intensidade do próximo ruído, divagando no silêncio dos pensamentos, buscando os ideais mais obscuros da minha imaginação. Ando pela casa, permeando entre o mundo das idéias e o mundo material, olho para o vazio aconchegante do quarto, e as paredes parecem me convidar para viajar em outras dimensões, quando me dou conta de que existe um prego na parede do quarto. Tento ignorá-lo, me auto-enganar repetindo prá mim mesma: é apenas um prego! Mas aos poucos ele vai tomando conta do ambiente que outrora era só meu, e o mundo das idéias sublimes se transforma agora em um mundo de fortes lembranças.
Lembro-me do primeiro dia que nos encontramos, você era tão alegre e cheia de experiências que me cativava a cada instante passado ao seu lado. No momento da despedida, depois de uma noite de muitas conversas e muitos risos também, você olhou para mim e me disse: tenho certeza que vai dar certo! Combinamos de morar juntas, e eu estava ansiosa e super empolgada com a nova experiência, mal podia esperar o dia em que mudarias definitivamente para a minha casa. Quando enfim, você veio morar comigo foi um dia muito especial, a empolgação era grande, tudo era motivo de comemoração. Com freqüência nós saíamos para nos divertir e eu te contava tudo o que acontecia comigo, meus sentimentos, meus pensamentos e planos para o futuro. Mas o tempo foi passando, e aos poucos eu fui perdendo aquela simpatia que antes eu sentia por você, a perda da minha individualidade foi sentida pelos freqüentes barulhos em momentos de meditação, as visitas inoportunas em horários que eu julgava impróprios, as conversas pelo telefone até de madrugada, os almoços e jantares oferecidos aos seus amigos sem ao menos me consultar e as músicas que cantarolava, entre gemidos e sussurros, durante grande parte do dia. Aquela casa, que antes eu tinha como um espaço para descanso e tranqüilidade, se tornou um ambiente estranho para mim, onde pessoas entravam e saiam sem que eu pudesse controlá-las ou mesmo selecioná-las.
Passei a repudiar tudo que estivesse relacionado a você, o seu forte perfume me cheirava mal, sua voz chegava aos meus ouvidos como um violino desafinado, sua comida me levava à ânsia, o seu andar era tão forte que causava em mim a mesma sensação de um martelo ferindo a minha cabeça, suas vestes me provocava indignação e suas idéias não passava de futilidades. Odiava a forma como você havia invadido o meu ambiente. Trancava-me em meu quarto, mas não existiam paredes, nem travesseiros, nem algodão ou fone de ouvido que me livrasse de perceber a sua presença. Os dias foram se tornando cada vez mais insuportáveis, quando você chegava em casa e os ruídos começavam, eu sentia meu peito apertando, o coração palpitava aceleradamente, as mãos esfriavam e surgia uma vontade enorme de gritar: Cala a boca! Mas me perdia entre a sensação de angústia e os ensinamentos de bons costumes, e nada conseguia fazer, a não ser chorar e lamentar a minha falta de coragem diante da situação.
Quando seus amigos chegavam, percebia um olhar carregado de sentimentos, uma mistura perfeita de raiva, piedade, compaixão e medo, que em poucos segundos eu era transformada de um ser humano para uma barata gigante ‘franzkafkeana’. Sei que meus esforços para cumprimentá-los e parecer simpática raramente foram percebidos, pois uma barata gigante, mesmo que sorridente, não deixa de causar espanto. Se por um lado lançavam um olhar mágico sobre mim, por outro eu os via como monstros invasores do meu mundo, tirando a minha tranqüilidade e extraindo a minha essência.
Lembro-me de que, em um certo dia, ouvi muitas conversas e risos, seguidos de um forte barulho de marteladas contra a parede, fui entender mais tarde que se tratava de um prego para a fixação de um espelho no seu quarto. Mas foi em uma noite de domingo quando eu senti o peito apertar, o coração palpitar rapidamente, as mãos esfriarem, a angústia sufocou os bons costumes e eu entrei no seu quarto e pedi para que você procurasse um outro lugar para morar.
Poucos dias depois você pegou todas as suas coisas e se foi, não deixou nada para trás, senti um enorme alívio, pois enfim, tudo voltaria a ser como era antes, um ambiente só meu, estar a sós comigo mesma e escutar o silêncio que vem da alma. Mas agora, olhando para este prego, novamente sinto o forte cheiro do seu perfume invadindo a casa, ouço sua voz, seus passos e seus risos me perturbam e com eles o sentimento de incapacidade de dividir o meu mundo com outra pessoa. Deixo de olhar fixamente para o prego, tento ignorá-lo e saio do quarto, mas é como se ele me chamasse, como se ele me olhasse, quando eu passo próximo a porta do quarto eu finjo não vê-lo, mas sei que ele está ali a me olhar também. Tranco a porta do quarto como uma forma de fugir, mas são vãs as tentativas de fuga, pois eu sei que ele continua lá, e ele também sabe que eu continuo aqui, então é como se conseguíssemos nos ver, e nos vendo eu sinto novamente o seu cheiro, sua voz e seus passos.
Chamo um carpinteiro, peço para que ele retire da parede aquele prego, ele retira, mas o buraco permanece na parede e me lembra que ali existia um prego. Peço para tapar o buraco que ficou, mas ficaram as marcas na pintura do quarto, as marcas do lugar onde havia um prego na parede. Chamo então um pintor que pinta o quarto, mas este fica diferente do restante da casa, então é preciso modificar toda a pintura da casa. Mas a cor da casa me lembra que ali no canto daquele quarto existia um prego na parede e que, por causa dele, foi preciso modificar toda a casa.
Decido então mudar de casa e ir para outra cidade, outro estado, mas por mais que eu me esforce, eu já não vivo em um mundo só meu, não é mais possível meditar no silêncio dos pensamentos ou viver no mundo das idéias, pois eu sei que em algum lugar, em certa casa, existiu um prego na parede.